Rastros para um testamento




O FRÁGIL LUME DAS PALAVRAS

Em testamento, costuma-se deixar o que se tem de valor. Legamos aquilo que acumulamos durante a vida. Não só o que acumulamos, mas sobretudo o que conquistamos.
De certa forma, todo livro é um testamento: em suas páginas, o autor nos deixa o fruto do seu trabalho.  Testamento compartilhado com todos que o lêem.
E o autor destes poemas? O que quer nos legar?
Sigamos os seus rastros.
Antes, um aviso: o caminho proposto não começa, necessariamente, neste livro, que é o terceiro do poeta. Fabiano Fernandes Garcez já nos legou outros dois belos trabalhos: Poesia, se é que há (2008) e Diálogos que ainda restam (2010). 
Chega, agora, ao terceiro livro e, neste, o flagramos nos meandros da memória a tatear raízes e paredes com mãos de menino. Ali, em sua infância, entre deslumbres e descobertas, vemos os primeiros rebentos no tronco do futuro poeta.
Tronco. Palavra que nos remete a raízes. Não por acaso alguns poemas tratam de família; falam dos pais e também do avô.
Seguindo os versos da primeira parte do livro (as pegadas do menino-poeta), chegamos à segunda leva de poemas: as fendas. Bem poderíamos chamá-las de ausências: ausência na pista limpa de carros; ausência de atenção à aula chata; ausência dos entes queridos à mesa do jantar.
E não só de ausências se constrói esta parte do livro, mas também de descoberta (do amor às palavras), de inaptidão (em empinar pipas) e de reconciliação (com a velhice). 
Saltando essas fendas – mas, claro, sem deixar de apreciar o que elas contêm – chegamos à última parte: os testamentos.
Nesta, encontraremos poemas, digamos assim, mais duros e maduros. Poemas com uma temática mais urbana, com anjos indiferentes e asas de fuligem. Ao lermos o poema Nascente, sentimos que o autor pretende retomar o tema da primeira parte, mas agora com a voz de um poeta adulto: “tenho por dever me curvar / às minhas raízes / que me sustentam / que me solidificam / Eu concreto e mudo”.
E com a última peça do livro, Garcez parece nos convidar a seguir com ele os nossos próprios rastros, na escuridão íntima do nosso ser: “Esse é meu ofício / É por isso que carrego comigo / essa vela debaixo da garoa”.
É o que devemos fazer: seguir os rastros, os poemas, os poetas. Sigamos a poesia. Sigamos, para que sua luz não se apague e continue a iluminar nossos passos.

Wilson Gorj
Autor do livro HISTÓRIAS PARA NINAR DRAGÕES, entre outros.




LOBISOMEM

Minha mãe fez uma história
sobre Lobisomem

De noite
            ele veio me visitar

Fui para o meio de minha mãe
e meu pai

que disse
que era bobagem,
que lobisomem nunca houve,
e eu era medroso

A mãe insistiu:
“Fique aqui”

Dormimos bem
Dormimos família
Dormi passarinho

Daí em diante
Lobisomem sempre
apareceu pra mim

Pág. 21





ESCOLA

Na sala de aula:

preposição,
artigo,
substantivo
e locução adjetiva

Quarenta alunos atentos
Um só dorme

mas é o único que sonha!

Pág. 40




ANJOS

Olhe para cima
Veja os anjos
Eles não me conhecem
Mas sei tudo a seu respeito
Seguem bem vestidos em suas roupas
Para nossos braços, caso queiramos
competir com o impossível
Tira-nos o dom pensante se perdemos a fé
Olhe os anjos
Contemple!
Mas de longe
Nunca olhe dentro de seus olhos
Pois que não apreciam
E cegam quem os encaram
Porque seus olhos são frios, nada dizem
Anjos, não são bons, nem maus,
Anjos apenas são
E não ligam para nós
Porém são admiráveis
e nos fazem esquecer de nossa dor

pág. 63








Um comentário:

  1. Muito bom, adorei seu estilo livre. Adorei as três, mas em especial a "lobisomem".

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